sábado, 23 de março de 2013

Dois olhos



Uma noite de início de primavera mais quente do que o comum. O casal continuava abraçado na cama, embora com fome, embora com sede, embora estivesse passando o final do filme que eles deixaram de assistir na metade. O primeiro, dos olhos castanhos, beijou a bochecha avermelhada do outro; já o outro, dos olhos negros, apenas suspirou agradavelmente. Passaram as mãos um no corpo nu do outro, com sorrisos no rosto. O dos olhos castanhos falou, enquanto acariciava a barriga do outro: “No mês que vem passarei duas semanas fora. Espero que não esqueça de mim”. O dos olhos negros respondeu com um olhar risonho e um beijo doce nos lábios. Os dois dormiram abraçados.
Na manhã seguinte, o de olhos negros acordara mais cedo e colocara o café na mesa. Os dois comeram-no rapidamente e foram cada um para seus respectivos empregos. No horário de almoço, em frente ao caixa para pagar a conta, o dos olhos castanhos abriu a carteira e encontrou um bilhete dobrado. Entregou o dinheiro ao atendente enquanto abriu o papel, com o seguinte poema:

Não sinto como se nós
Fossemos um só;
Sinto-nos como dois,
O que é muito melhor.

“O senhor ficou satisfeito”, perguntou o atendente. A resposta foi dada com os olhos do castanho mais brilhante de todos.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Saudade da Dona Irma

    Lembro-me de quando ela trazia doce de leite em potes de Nescafé. Ela era ranzinza e até um pouco amarga. Nas suas palavras, não havia muito  amor : o carinho vinha no pote de café.
    Levava um dia inteiro fazendo o doce preferido do neto para vê-lo feliz quando ia a Porto Alegre, mas nunca lhe disse um eu te amo.
    Sinto saudade de ver aquela senhora franzina com o cabelo metodicamente arrumado. No corpo, sempre uma saia longa e ,no rosto, algum creme anti-rugas.
    Não conversei muito com minha vó. Aproximamo-nos apenas nos últimos dias de sua vida. Engraçado ver como aquela senhora rígida dotou-se  de um extremo bom humor naquele período tão triste. Talvez eu não tenha aprendido muito sobre a vida com ela; mas, certamente, aprendi muito sobre a morte.
    Nunca mais comi um doce de leite como o dela. Nunca mais ouvi cantigas em alemão antes de dormir. Nunca mais recebi carinho em potes de café.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Caixinha de Jóias

               De vez em quando, fico com o coração amarrado, com o Universo fechado, estagnado, denso. Os mais altos ideais se perdem diante das angústias de uma verdadeira paixão. Superar isso? Transcender isso?  Transcender pelo excesso ou pela abstinência?
              Amar é perder-se.
              Amar é fundir-se.
              Amar é morrer um pouco.
              Amar é deixar-se ser.
              Quando amo, eu morro um pouco dentro de mim.
              Existem lugares dentro de meu ser que são tão delicados  - que doem tanto. Há pessoas que me doem muito. Poderia guardar as memórias que delas tenho em uma pequena e imaginária caixinha de joias – em uma daquelas com uma bailarina em cima.  Toda noite, eu escutaria o som que faz a bailarina dançar e, então, eu saberia que aquilo tudo que me é tão raro e precioso está bem protegido, está escondido no fundo de minha mente.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Novo Dia


O dia iniciava diferente naquela pequena cidade perdida no meio do nada. A estrela d’alva encontrava, finalmente, companhia - via brilhar uma companheira, que resplandecia lúcida no terceiro planeta desse sistema solar.
                O Sol surgia tímido no horizonte, esperançoso pelas boas novas que o novo dia inspirava. A cidade estava iluminada. E iluminada estava a pele de Clarice. Pele alva, cabelos loiros até a cintura. Clarice sentava-se serena no banco da praça da cidade. No seu corpo, nenhuma roupa, nenhum tecido, nenhum adorno exceto uma fita de Nosso Senhor do Bom Fim que deixava amarrada em uma canela. A pele branca da menina resplandecia na modesta praça da humilde cidade. Apesar das curvas e volumes característicos de uma bela menina de dezenove anos, sua postura não invocava vulgaridade.  Sua imagem equilibrava-se entre a sensualidade e o místico – parecia uma fada, uma linda fada, que repousava nua , meditativa, indiferente. A manhã iniciava levemente fria, deixando o corpo da jovem  arrepiado, os seios rijos, os lábios vermelhos.
                Um dia, quando muito pequena, Clarice havia lido um romance sobre um jovem que buscava encontrar o país onde todos são amigos. Naquele tempo, a menina perdeu toda semente de maldade que poderia haver em seu coração.  Os anos passaram, e a mente da jovem ficava mais terna e tranquila. A pequena e ansiosa Clarice serenou.  No dia em que se sentou nua na praça, estava tranquila, estava feliz. Não sabia o que viria pela frente – tudo era incerto: não tinha dinheiro consigo, não tinha nenhuma posse, não tinha sequer roupas. Teria ainda um nome? A incerteza não a angustiava. Clarice apenas repousava extática.      
                Aos poucos, formavam-se grupos ao redor da praça. Apontavam para menina, que se misturava com a natureza de forma tão despreocupada que alguém poderia pensar que ela sempre estivera ali.  Nos olhares e nos discursos dos cidadãos,  poderia se encontrar desejo, censura, raiva, inveja.  A nudez de Clarice incomodava, da mesma forma que a luz fere os olhos daqueles que passam muito tempo na escuridão. A pureza dos belos seios machucava as mentes poluídas de dogmas das velhas senhoras. Clarice parecia não ouvir os comentários daqueles que passavam. Aqueles que passavam não conseguiam fingir que não viam Clarice.             
                O dia passava, e ninguém sabia o que se sucederia. Nem mesmo Clarice o sabia. O dia passava, e a cidade lentamente se acalmava. A necessidade de seguir os compromissos normais de uma cidade, mesmo que pequena, pressionava as pessoas a seguirem suas vidas, ainda que quisessem viver a vida de Clarice.
                E por que não viver a vida de Clarice? Que força era essa que puxava todos, todos os dias, para seus trabalhos, para seus relacionamentos, para suas casas: para suas prisões?  Talvez muitos que passaram por aquela praça tenham se perguntado isso, poucos tiveram a ousadia de responder. Dentre esses poucos, um grupo ainda menor resolveu acreditar em sua resposta.
                O Sol caía contente no poente, e a praça escurecia com Clarice acompanhada de outras quatro pessoas nuas. Foram se chegando um a um. Não trocaram nenhuma palavra. Sequer trocaram um olhar. Não houvera comunicação, mas havia comunhão. Não precisaram dizer nada, seus corações já tinham concordado em tudo. Estavam todos em paz. Estavam todos em união. Não havia roupa, nem compromisso, nem pecado, nem separação. No dia seguinte, poderiam conversar sobre o  sincero comunismo que acabava de ser implantado na praça da cidade.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Meu mundo é maior.

Dentro da minha cabeça o meu mundo é maior.
Quando fecho meus olhos, vejo mais você do que com eles abertos, perspicazes, fervorosos
Eles vão de um lado a outro no espaço, mas
Minha mente vai de lado a outro no tempo.
Beijei seus lábios mais vezes do que você percebeu.
Contive um passado que queria virar futuro e botei o presente para dormir
Ficou o limbo, a forma inicial de existência
Não havia paraíso ou inferno, em princípio
Então esse que vocês chamam de cupido
Virou um ferreiro, que me marcou com um sinal que arde para sempre.
De olhos fechados a realidade se distorce
E da cozinha não vem aroma de café.
O futuro também caiu no sono
Mas o passado sofre de insônia.


por Guilherme Castro.

Para quem não sabe quem sou.


                Seus olhos me veem, mas suas mãos não me tocam. Meu corpo não é deste mundo. A matéria que me compõe é feita do mais sutil arco-íris. Não me julgue por minha aparência humana: não pisamos no mesmo solo.
                Já comandei as mais altas tropas de Marte, namorei os mais doces amantes de Vênus. Fui coroado em Júpiter e adorado em Saturno. Seus deuses embalaram-me até dormir quando eu era uma criança.
                Meu perfume é incenso sagrado cuja fumaça separa os mundos dos deuses e homens. Minhas vestes são feita s do ouro da coroa do rei deste Universo.
                O que você vê é a sombra das sobras da sombra  do que sou.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Na Noite


A noite é um vazio sem fim
É uma falsa busca
É uma busca por nada.

                Na noite as pessoas são corpos. Tu és um corpo. Eu sou um corpo. Na noite, só existem formas: curvas, volumes, espaço, falta de espaço. Teus olhos parecem ficar mais azuis com essa camiseta. Ilusão. Sexo. Fantasia. Geometria. Picasso. Cubos? Hipérboles! Na noite, nada é cartesiano.
               Na rua, uma mesa apertada, quatro cadeiras, quatro amigos – três meninos, uma menina - quatro copos, uma cerveja.
No bar, toca um álbum antigo do Chico Buarque. Cigarros acesos. França?
                Na noite as pessoas são corpos.
                Levantei-me da mesa ainda um pouco tonto da cerveja. Fitei de relance o volume de Bukowski que repousava na mesa ao lado. Não havia ninguém olhando. Fui ao banheiro. Fila. Conversas aleatórias com pessoas estranhas. Já havíamos entrado algumas horas do novo dia, ainda iríamos a uma balada duas quadras dali.
                Lugar apertado. Calor. Álcool. Álcool. Álcool.  Beijo na boca. Na noite, as pessoas são corpos. Beijo um, dois, três, quatro corpos.  Na noite não há sentimento. Somos todos corpos. Formas. Geometria. Lobachevski. Álcool. Sentei-me num sofá que ficava no segundo andar. Comigo trazia o último corpo que havia escolhido na noite. Tu julgas as pessoas que estão aqui, não é? Tu as julgas, mas não esqueça que tu estás no meio delas.
A noite é um cardápio humano. Na noite, eu consumo álcool, eu consumo tabaco, eu consumo corpos.
                Na noite não há sentimento, não há paixão. E, se não há paixão, não há vida. Na noite as pessoas estão mortas! Dançam os cadáveres frenéticos da noite.
                Acordei com os ossos doídos. Tomei um banho demorado, passei café extraforte, servi-me uma xícara, acendi um cigarro.
                O dia estava ensolarado e eu fui à janela começar a ler o meu mais novo exemplar de Memórias de um Velho Safado.